Este é o final do capítulo 5

     O homem está desconsolado. Vê lá adiante o descampado da rodovia. Vai terminar o percurso. Bolívia não veio. Agora restam pouco metros. Já divisa a sombra do barracão que vira na viagem de reconhecimento.
     - Teria sido apanhado, o filho da mãe? - pergunta-se em pensamento. Ou toda a conversa não passara de lero?
     A estrada é ruim. Aí pior do que o trecho anterior. O carro vacila entre as poças d'água do terreno arenoso.
     - A uma hora desta o filho de puta deve estar dormindo no bem-bom - é o novo pensamento do homem.
     Sente raiva. Vê-se logrado estupidamente por um boliviano desgraçado que, possivelmente, nem se lembra mais dele. As rugas do seu rosto crispam-se. Os pés-de-galinha alteiam-se dando-lhe um aspecto cavernoso.
     O carro serpenteia entre os buracos.
     Em dado momento os faróis iluminam uma figura plantada na beira da estrada. O homem assusta-se. A figura é estranha metida num poncho. Como um fantasma. O carro está próximo da figura. O farol alumia-a bem.
     É Fernando, o Bolívia. Ele está ali, parado. É ele, embora não pareça. Tem de ser. Quem mais estaria ali num tempo como esse, frio, gelado, horrível? Quem a não ser alguém compromissado? Tem de ser ele. O poncho de lhama. É Bolívia. Um gorro de couro na cabeça, está frio, muito frio. Sob o poncho um volume. Só pode ser Bolívia.
     O homem pára o carro próximo da figura. Precisa conferir. Daquele jeito não dá. O carro parado, o motor ligado espicha o corpo para a porta direita. Abre uma fresta, meio vidro, pergunta lacônico:
    - Bolívia?
    - Sí, señor.
     É ele. Ele veio!
     Revê agora os acontecimentos que fizeram de si um animal. Revê sua filha estirada no matagal. As carnes expostas. Brilhantes e inchadas. Um passeio para as formigas que carregavam partículas de sangue ressequido para as suas tocas. Espetáculo hediondo para os curiosos que se amontoavam como aves de rapina. O corpo arroxeado, cheio de hematomas e escoriações. A boca aberta e um líquido azulado a escorrer. Os cabelos empastados numa poça de sangue endurecido. Um seio retalhado mostra os seus músculos internos brancos, esgotada a última gota de sangue. Entre os corte já as varejeiras botaram os seus ovos que se fertilizam à custa daquela carne tenra e subjugada.
     É Bolívia. Ele veio. O seu dia de sorte. Repreende-se por ter feito mau juízo do estrangeiro. Muita sorte. Precisará ainda de muitos dias de sorte. Não pode ser abandonado. Ela é necessária. Vital. A sorte terá de acompanhá-lo.
    O vento agora dá uma baforada mais prolongada jogando os pingos de chuva, mais intensa, no rosto do homem, entrando pela meia janela aberta. O frio encrespa a pele.
     O homem desce. O carro desligado. A porta aberta. À sua frente Bolívia. Sua aparência é a de um sino com aquele poncho caído ao longo do corpo. Sem dúvida confortável.
     - Trouxe a mercadoria?
     Bolívia afasta os braços do corpo sob o poncho. No lado direito surge um tufo na extremidade do braço.
     - Si, señor - não tem sotaque, fala a sua língua.
     - Quanto?
     - O combinado - agora arrasta o português.
     O homem está encantado. Foi muito fácil. Injustificados todos os seus medos e desconfianças acerca da conduta do estrangeiro. O frio parece aumentar. Os braços cruzados, o homem retesa os músculos prendendo e soltando a respiração na tentativa de gerar um pouco de calor.
     - Fácil, não? - pergunta ao estrangeiro.
     - Si, muy facil... sabe, moço, o negócio sai é daqui - responde com uma mistura de línguas.
     - Que negócio?
     - Quase todo o pó que gira pelo Brasil sai daqui... todo mundo traz até aqui... O trem llega en Aquidauana más o minos as duas de la mañana. Aqui não tem policia.
     A conversa é rápida. O homem ouve interessado.
     - Despues, vai daqui para fora por qualquer meio de transporte: carro, avión, cavalo... mas sai daqui... es aqui la mina.
     Toda a conversação não dura mais que dois minutos.
     - Tem alguém com você? - pergunta o homem.
     - No, estoy solo - Bolívia responde.
     - Então vamos logo.
     Bolívia levanta o poncho. Tem um embrulho envolto por tiras de náilon, à forma de alça. Estende o braço em direção do homem.
     - Como es mismo su nombre?
     - Gamarra.
     - Entonces, señor Gamarra... la plata.
     O vento sopra mais fortemente agora. Gamarra, o homem, descruza os braços, leva a mão direita às costas. Uma pistola 9 mm aparece na sua mão ante o olhar estupefato de Bolívia. Cinco tiros. O peito estilhaçado, o estrangeiro abre os braços caindo para trás como um fardo. Gamarra apanha o embrulho. Bolívia está estatelado numa poça d'água. Seus olhos arregalados refletem o brilho apagado da morte à fraca luz das lanternas do carro parado. Gamarra, um derradeiro tiro na testa do estrangeiro, entra no carro.
Adquira IMPUNIDADE
Estilo Romance Policialesco
Formato 14 cm x 21 cm
Número de páginas, 217